Você já reparou que Tiradentes é o único feriado nacional que se dedica a uma pessoa brasileira? Todas as outras datas se referem a celebrações religiosas e a datas históricas ou comemorativas. Por que Tiradentes tem tamanha importância?

Para compreender como chegamos até a instituição de 21 de abril como feriado, é preciso conhecer alguns acontecimentos históricos ocorridos durante o período do regime colonial português no Brasil, que vigorou entre os séculos XVI e início do XIX.

Confira a seguir o que foi a Inconfidência Mineira e quem foi Tiradentes, alçado como “herói brasileiro” da luta pela independência do país.

A Inconfidência Mineira e a revolta contra o domínio da Coroa Portuguesa

Ao longo dos anos em que dominou o território brasileiro, a Coroa Portuguesa foi atacada por dezenas de revoltas, conspirações e motins, feitos com a participação de populares, religiosos, militares, povos originários, escravizados e forças estrangeiras. Os motivos de insatisfação eram variados e nem sempre visavam à independência do Brasil.

Uma destas revoltas mais estudadas e lembradas é a Inconfidência Mineira, ocorrida em Vila Rica (atual cidade de Ouro Preto, Minas Gerais) em 1789. Ela também é chamada de Conjuração Mineira.

A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, foi o palco da Inconfidência Mineira.

A Inconfidência Mineira acontece em um período em que a Coroa intensificou sua política fiscal rígida, com repressão violenta ao contrabando de metais preciosos e cobrança de impostos considerados muito altos pelos colonos que aqui viviam e compunham a elite econômica mineira.

Tais acontecimentos começaram a gerar uma conspiração contra o domínio português, com o desejo de uma melhor destinação dos impostos e a fomentação de ideias separatistas para Minas Gerais.

Entretanto, o movimento contra Portugal nunca foi oficialmente “iniciado”, pois foi traído e “dedurado” para a Coroa por Joaquim Silvério dos Reis. Foi iniciada então a “Devassa”, um processo judicial para apuração das informações fornecidas por Silvério e que determinou a prisão dos indicados como líderes do movimento.

Os envolvidos chegaram a receber a pena de morte, mas foram posteriormente perdoados e se safaram do enforcamento. Exceto uma pessoa: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, chamado de Tiradentes.

Com a execução brutal de Tiradentes, a Inconfidência Mineira, que mal tinha começado, foi finalizada. Mas, posteriormente, o movimento foi alçado a símbolo da liberdade no estado de Minas Gerais e Tiradentes foi enaltecido como um dos precursores da Independência do Brasil e da luta pela Proclamação da República.

Quem foi Tiradentes?

Tiradentes foi o apelido popular dado para Joaquim José da Silva Xavier. Não há um registro oficial do nascimento de Tiradentes, mas acredita-se que ele aconteceu na Fazenda do Pombal, na circunscrição territorial da vila de São João del-Rei, no mesmo ano do seu batismo, realizado em 12 de novembro de 1746.

Existem, porém, documentos que atestam sua ancestralidade. Os pais de Tiradentes são Domingos da Silva Santos, proprietário rural português, e Antônia da Encarnação Xavier. Também há registro sobre os avós paternos de Tiradentes, chamados André da Silva e Mariana da Motta. Ambos viveram apenas em Portugal. Seus avós maternos foram Domingos Xavier Fernandes e Maria de Oliveira Colaço. Domingos era português e Maria era brasileira, nascida no estado de São Paulo.

O alferes teve outros seis irmãos, que ficaram órfãos de mãe em 1755 e de pai em 1757. Os historiadores, infelizmente, encontram várias barreiras para explicar aspectos da juventude de Tiradentes, devido à ausência de documentação da época. É importante lembrar que estamos falando de um personagem que viveu no século XVII. Nesses mais de 200 anos, muita coisa se perdeu.

Após a morte de seus pais, Tiradentes foi encaminhado para criação pelo seu padrinho, e tio, Sebastião Ferreira Leitão, que atuava como cirurgião-dentista. Como José Xavier passou a exercer o mesmo ofício que seu tio, ganhou o famoso apelido de Tiradentes. Ele não realizou cursos oficiais, portanto não tinha uma formação acadêmica. Já o título de “alferes” dado a Tiradentes é devido ao seu ingresso na carreira militar em 1775.

A execução de Tiradentes foi feita numa manhã ensolarada de sábado, em 21 de abril de 1792. A ordem dizia que ele deveria ser enforcado. Posteriormente, deveria ter sua cabeça arrancada do corpo e espetada no mais alto poste da praça central de Vila Rica. Foi ordenado ainda o esquartejamento de seu corpo e exposição pública das partes na estrada entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Por fim, sua casa deveria ser destruída e o terreno salgado, para que a terra do local ficasse infértil.

A pintura “Tiradentes ante o carrasco” (1951), de Rafael Falco, retrata o personagem histórico momentos antes de sua execução.

O historiador Paulo da Costa e Silva conta no artigo “A outra face do alferes” que Tiradentes teve um relacionamento amoroso com Antônia Maria do Espírito Santo, com quem teve uma filha chamada Joaquina, batizada em 1786 na Igreja Matriz de Vila Rica. Na época, era costume que as mulheres adotassem o sobrenome do marido ao se casarem, o que fez com que a possível linha de descendência de Tiradentes tenha se perdido entre os registros históricos.

O mártir: a imagem criada de Tiradentes

Quando você estudou sobre a Inconfidência Mineira na escola, provavelmente viu nos livros e documentários a imagem de um homem de cabelos longos, com barba. Qual outro personagem com grande relevância na cultura ocidental possui as mesmas características? Jesus Cristo! E isso não é apenas coincidência.

De acordo com a pesquisadora Maria Alda Barbosa, não se conhecia a descrição física de Tiradentes, e, por tal razão, os artistas se sentiram livres, por meio do direito de licença artística dada a estas representações para fazer um retrato alegórico do herói falecido.

Em sua tese de doutorado, ela explica: “Nos depoimentos à Devassa, Tiradentes portou-se com dignidade e firmeza. Diante de todas as pressões e das ameaças que lhe faziam, jamais se amedrontou. Aceitou tudo com estoicismo e resignação. E em virtude disto, e por ter sido salvo espiritualmente pela fé religiosa na Santíssima Trindade, foi condecorado ao patamar de herói”.

Esta ligação com o cristianismo está diretamente ligada com a nossa formação cultural religiosa, como explica o professor José Aires em um artigo sobre o assunto publicado em 2009: “como o Brasil tem uma formação histórica basicamente cristã, ficava mais fácil construir heróis cívicos colados no herói religioso, pois, em tese, teriam maior aceitação no meio da população”. Ele continua: “sendo um ‘Cristo do civismo’, para o Brasil, seria mais facilmente transformado em herói nacional e não apenas em herói Republicano”.

A estátua de Tiradentes localizada na cidade do Rio de Janeiro, com esta figura “cristianizada”, foi oficializada como modelo obrigatório para reprodução da figura de Tiradentes, conforme o Decreto nº 58.168, de 11 de Abril de 196, por ordem do general Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro presidente do período da Ditadura Militar (1964-1985). Outras esculturas, como a da imagem abaixo, em Ouro Preto, seguem o mesmo modelo.

Escultura representando Tiradentes na cidade mineira de Ouro Preto.

A construção de “heróis nacionais” é típica do modelo de forja de símbolos patrióticos realizados em regimes como o da Ditadura Militar e do Estado Novo, este segundo comandado por Getúlio Vargas entre as décadas de 1930 e 1940. Ambos resgataram diversos atributos cívicos da história brasileira na ânsia de formar uma identidade nacional.

Há controvérsias e poucos fatos estabelecidos sobre a real imagem de Tiradentes. A tese de Maria Cabreira cita que a historiografia oficial o coloca como “um homem magro, [com] cabelos longos e negros, [e] barbudo”. Já nos da Devassa da Inconfidência Mineira, há depoimentos que colocam Joaquim José da Silva Xavier como “um oficial feio e espantado”, “não era moço e já tinha cabelos brancos” e que “já tinha cabelos brancos e (…) falava com muita liberdade”.

Essa imagem de um Tiradentes mais velho, já com cabelos brancos, não é a que vemos nos principais quadros que representam a figura do alferes. E, mesmo assim, durante os mais de dois séculos que sucederam a Inconfidência Mineira, não houve uma unanimidade sobre como retratar a figura de Joaquim Xavier.

A arte é um campo de disputas que reflete narrativas diferentes e o discurso de poder vigente que se deseja imprimir. Ao se deparar com representações, como a de Tiradentes, é sempre válido refletir quais ideais e mensagens que estão ali retratadas, e assim, compreender mais a fundo a história do nosso país e dos símbolos que formam a nossa identidade coletiva.

Referências

AIRES, José Luciano de Queiroz. Pintando o Herói da República: a Construção do Imaginário Mitificado de Tiradentes e o Ensino de História. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548772005_5e30640dc306e76bd19608db4388dd1c.pdf. Acesso em: 20/04/2022.

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CABREIRA, Maria Alda Barbosa. A representação de Tiradentes na numismática e na filatelia, 2019. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/180654>. Acesso em: 20/04/2022.

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IMPRESSÕES REBELDES – documentos e palavras que forjaram a História dos protestos no Brasil. Inconfidência Mineira – Minas Gerais. 2013. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/?revoltas_categoria=1789-inconfidencia-mineira. Acesso em: 20/04/2022.

KASSAB, Álvaro. Fragmentos de um Herói Despedaçado. Jornal da UNICAMP. Ano XXI. Ed. 345. Págs. 6-7. 27 nov. 2006. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp_hoje/ju/novembro2006/ju345pag6-7.html. Acesso em: 20/04/2022.