A psiquiatria é o ramo da medicina que lida com os sofrimentos e transtornos de origem psíquica severos. Como tal, é a única especialidade de saúde mental que está habilitada a receitar drogas e medicamentos para o tratamento de pacientes por ela diagnosticados.
Apesar disso, os erros na prescrição de medicamentos são um problema frequente e preocupante que afeta o tratamento de pacientes psiquiátricos. Esses erros são uma das causas mais comuns de danos a pessoas sob acompanhamento. E o pior de tudo: poderiam ser facilmente prevenidos e evitados.
Essa é uma das conclusões de um estudo da Universidade de Deli 1, na Índia, que também quantificou a incidência dos erros de prescrição mais relevantes: 53% perda de dose (por esquecimento ou outras razões); 15% erro na dosagem; 8% erro na frequência e 5% erro na via de administração. Dessas falhas, 1% são fatais, 12% podem ameaçar a vida do paciente e 28% são evitáveis.
Isso posto, vem ganhando espaço e destaque no mundo inteiro a Farmacogenética, uma estratégia de tratamento que envolve estudos genético-moleculares para potencializar a precisão no uso de medicamentos psiquiátricos. E no Brasil não é diferente.

Como e por que surgiu a Farmacogenética

Pesquisas na área da saúde evidenciaram a existência de variações genéticas em cada ser humano. Dentro desse contexto, vale ressaltar as variações nas enzimas do citocromo p450 (as CYPs), responsáveis por diferentes concentrações plasmáticas dos mesmos medicamentos após a ingestão de uma mesma dose por indivíduos diferentes.
Isso se dá porque essas enzimas participam da etapa farmacocinética da ação do medicamento, ou seja, de seu metabolismo e distribuição (especialmente o primeiro). Assim sendo, dois indivíduos, quando submetidos ao mesmo tratamento, podem responder de maneira completamente diferente à terapia, apresentando mais ou menos efeitos adversos e, da mesma forma, terapêuticos. Essa é a base científica da farmacogenética.
Em 2005, a Food and Drug Administration (FDA), órgão com funções similares às da Anvisa, que regula os medicamentos e alimentos nos EUA, aprovou o primeiro teste de farmacogenômica para psicofármacos, o que a transformou a Psiquiatria no primeiro campo terapêutico a poder se beneficiar de testes genéticos para a prática clínica.
Com isso, foi criado o que é chamado de “safety pharmacogenomics”, ou “farmacogenômica de segurança”, que permite prever, pela análise do DNA, se um paciente reagirá bem ou não a certo medicamento, reduzindo, assim, a estratégia de tentativa e erro que ainda persiste entre os tratamentos.
O farmacologista Guilherme Suarez Kurtz, chefe do Programa de Farmacologia do Instituto Nacional do Câncer (Inca), acredita que genes e medicamentos estão “interligados” 2. No Simpósio Medicina Translacional, em 2012, ele declarou que os genes CYP representam o grupo mais importante da farmacogenética. “As enzimas da família CYP metabolizam cerca de 80% dos medicamentos de uso clínico. Com isso, variações nos genes CYP podem alterar as doses a serem usadas”, disse.

Iniciativas globais e desafios para a implementação da Farmacogenética

A FDA já possui uma página 3 que traz diretrizes relacionadas à implementação da farmacogenética na rotina clínica, contando inclusive com orientações sobre a variação de dosagem prescrita de acordo com o perfil genético de metabolização do paciente.
Além disso, existe o PharmGKB 4, uma base de dados que reúne informações de consórcios como o Clinical Pharmacogenomics Implementation Consortium (CPIC) e o Dutch Pharmacogenetics Work Group (DPWG). Esses consórcios são formados por pesquisadores e clínicos de diversas especialidades com o intuito de definir as diretrizes e orientações para o uso racional e funcional dos exames de Farmacogenética.
Dois fatores principais afetam a disponibilidade dos testes genéticos para prescrição de drogas e medicamentos para tratamento psiquiátrico (ou qualquer outro efeito): as tecnologias e equipamentos necessários para análise e a validação clínica dos ensaios.
A validade do exame clínico depende da relação do gene com o resultado que se espera obter, o que pode ser difícil de estabelecer, pelo menos num primeiro momento. Por exemplo, pode haver vários genes independentes que contribuem para uma mesma resposta a um fármaco e que ou ainda não tiveram sua relação com o fármaco bem elucidada ou não está incluso no painel em questão.
Além disso, para um mesmo gene, pode haver vários alelos que resultam na condição que se quer tratar, e é necessário que o ensaio pesquise uma quantidade razoável deles para que haja confiança estatística no resultado da análise. Validar os marcadores genéticos de maior relevância é outro fator que atualmente ainda dificulta a utilização em larga escala da farmacogenética.

Os desafios para implementação da farmacogenética no Brasil

Embora nos países mais desenvolvidos os testes de farmacogenética já estejam mais popularizados, aqui no Brasil ainda há poucas empresas comercializando-os: em 2012, eram apenas três 5. Dentre os motivos, podemos citar:

  • Todos os dados e diretrizes publicados até o momento são em inglês, o que acaba sendo uma barreira para muitos profissionais brasileiros que não possuem fluência na língua;
  • A maioria dos estudos que relacionam dose e perfil de metabolização leva em conta populações europeias, norte-americanas, afroamericanas e ameríndias com enfoque norte-americano. Há pouquíssimos estudos de frequência alélica da população brasileira no geral, e especialmente para os genes que expressam enzimas do citocromo p450;
  • O cenário da economia brasileira determina que reagentes e equipamentos necessários para a realização do teste sejam muito caros, o que acaba resultando em um o preço final muito alto para o exame;
  • Baixa cobertura de convênios e planos de saúde, tanto por desconhecimento quanto pelo alto custo envolvido.

A farmacogenética é uma ferramenta muito importante para alcançar a individualização do tratamento em psiquiatria, uma taxa de sucesso maior e a redução dos erros em prescrição de medicamentos. Ela também pode trazer muitos benefícios para a saúde pública, seja por diminuir o número de pessoas incapacitadas por doenças mentais, seja fortalecendo o Uso Racional de Medicamentos e minimizando o desperdício dos fármacos disponibilizados pelo SUS.
Porém, apesar de todos os benefícios já apontados, esse ainda é um campo em desenvolvimento. Para demonstrar que um exame farmacogenético tem validade clínica, como dito anteriormente, e pode oferecer resultados úteis, são necessários estudos cuidadosos que exigem tempo e recursos consideráveis.
De uma forma ou de outra, o progresso da aplicação dos resultados obtidos em  laboratóriono uso clínico da Farmacogenética ocorrerá na medida em que pesquisadores, indústria farmacêutica e empresas de diagnóstico passem a trabalhar de maneira integrada e oferecer as respostas necessárias para uma demanda cada vez mais emergente em nossos tempos.

Referências

  1. BHATIA, M. S. Prescription Errors in Psychiatric Treatment: Are they preventable? Delhi Psychiatry Journal, Abr. 2010, Vol. 13 No.1
  2. CASTILHOS, M. Farmacogenética torna possível aplicar terapias individualizadas. 29 jan 2013. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/01/29/farmacogenetica-torna-possivel-aplicar-terapias-individualizadas/. Acesso em 11/2018
  3. U.S., DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES, FDA., Pharmacogenomics: Overview of the Genomics and Targeted Therapy Group. Disponível em: https://www.fda.gov/Drugs/ScienceResearch/ucm572617.htm. Acesso em 11/2018.
  4. STANFORD UNIVERSITY, PharmGKB. Disponível em: www.pharmgkb.org., Acesso em 11/2018.
  5. PALMEIRA, L. Farmacogenética: medicina personalizada. Disponível em: http://leonardopalmeira.com.br/website/farmacogenetica-medicina-personalizada/. Acesso em 11/2018.